Livraria 107 não resiste à crise e está em risco de encerrar

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1979

notícias das CaldasA Livraria Loja 107 está em dificuldades e a sua proprietária, Isabel Castanheira, pondera vir a encerrá-la. As dificuldades do sector são muitas, o livro desmaterializou-se e é vendido em vários locais e a politica do preço fixo não é respeitada em Portugal.
E nem o facto de esta livraria ser uma referência na cidade e de ter tido mais de uma centena de escritores a participar nos seus café-literários altera seu futuro pouco risonho, cuja acção cultural é reconhecida em todo o país.

Isabel Castanheira dedicou 35 anos à sua livraria. “O amor aos livros é anterior ao surgimento da 107”, conta a livreira que, com o irmão António José Castanheira, aprendeu a gostar de livros e de leituras com o pai. Em Angola, onde viveram alguns anos, tinham carta branca na “livraria do senhor Godinho” em Luanda.
E foi em nome desse gosto que, quando regressaram a Portugal e às Caldas – de onde é originária parte da família – decidiram abrir uma livraria.
Em 1976, Isabel Castanheira ainda trabalhou um dia na Livraria Parnaso, na Rua das Montras, mas depois a família achou melhor abrir o próprio negócio.
Tomada a decisão, foi com o investimento de Noémia Castanheira, mãe de António e de Isabel, que foi iniciada a actividade. Parte do investimento inicial resultou do trespasse de uma retrosaria –  que ainda existe na Praça da Fruta – e que pertenceu ao avô Castanheira. Escolhido o local onde já tinha funcionado uma loja de sementes na Rua Heróis da Grande Guerra, era tempo de arregaçar as mangas e de dar vida à nova livraria. Era um tempo em que tudo chegava de comboio e era dentro de uma carroça que as caixas de livros vinha da estação das Caldas para a loja. “Até o balcão do estabelecimento chegou de comboio”, conta Isabel Castanheira.
António José e Isabel referem a emoção dos primeiros dias quando chegava a fazer 600 escudos (3 euros) de caixa, “o que não era nada mau”.
Naquele final de década de 70, a Livraria fechava às 22h00. “Só que ninguém se ia embora. Ficava tudo na conversa e por vezes era meia noite e ninguém arredava pé”, contou a livreira.

“Uma aprendizagem constante, num mundo ainda sem internet”

A empresária conta que em 1976 trabalhar na 107 ainda sem funcionárias (actualmente tem duas) era uma aprendizagem constante pois “o meu conhecimento de livros era de lê-los e não de os arrumar ou vender”.
A catalogação das obras contou com a preciosa ajuda de amigos e família e viveram-se muitas aventuras para adquirir livros de autor que os clientes pediam, fosse a editoras que só pretendiam distribuir para Lisboa, fosse a padres que só vendiam consoante a cara do cliente.
Não faltam histórias para recordar como, por exemplo, a venda de livros relacionada com a decoração das salas. “Vendi uma vez 16 centímetros de livros verdes encadernados porque era esta cor que ficava bem com os cortinados”, disse a livreira, que teve pena desta venda cega pois entre o lote ia uma obra de cartas de Camilo Castelo Branco ao seu editor, que queria ter adquirido para si.
Em Portugal não há formação para livreiro, mas segundo Isabel Castanheira, é necessário  “ter uma certa cultura geral”.
Mas se antes se sabia de memória nomes de autores e de colecções com alguma facilidade, hoje em dia são publicados 30 livros por dia no país, o que dificulta um pouco mais a tarefa.
Além do mais também deixou de existir o livro objecto, com apostas em traduções de escritores e ilustrações de artistas plásticos. “Já não há nada disso, deixou de se fazer…”, conta a livreira, preocupada também com os curricula das escola que deixam de fora a larga maioria dos escritores portugueses.

A primeira livraria do país a ser informatizada

A Livraria Loja 107 foi a primeira do país a ser informatizada, ainda na década de 80, e até chegou, por causa disso, a ser notícia no Jornal de Letras. “Fizemos um investimento de 1300 contos, uma verdadeira fortuna na época e foi adquirido em leasing”, contaram os irmãos Castanheira, que tiveram a ajuda de um amigo de Lisboa na construção da aplicação.
Era um corrupio de telefonemas, até de editoras, que ligavam para as Caldas para confirmar se este ou aquele livro tinham de facto sido editados. E até havia telefonemas dos responsáveis da Biblioteca Nacional que estavam a começar a informatizar e precisavam de esclarecer pormenores.
Desde sempre que os pedidos de esclarecimento sobre questões literárias e culturais são algo que faz parte da própria livraria. E se tiver algo a ver com livros, autores, ou com a cidade, a responsável faz questão de tentar ajudar tudo e todos. “As livrarias devem ser centros de saber e de partilha e conhecimento”, disse Isabel Castanheira.
Os melhores anos em relação a vendas estão relacionados com os tempos em que funcionou o pólo da UAL nas Caldas, perto da década de 90.
Por causa das novas necessidades, em 1990, decidem aumentar o espaço da livraria, tendo usufruído de financiamento do Sistema de Incentivo à Modernização do Comércio. Com as obras, o espaço de exposição na livraria duplicou.
Na década de 80 a Livraria 107 começou a convidar para vir às Caldas os nomes importantes da literatura portuguesa. “Estamos muito gratos e satisfeitos por ter contribuído para interessantes momentos de partilha entre autores e leitores”, disseram os irmãos Castanheira.
Isabel salienta a abertura dos mais variados espaços que sempre receberam as suas iniciativas desde o Pópulos, ao Café Central e ao CCC que receberam, entre outros, José Saramago, Lobo Antunes, Ondjaki, Luís Cardoso, Mia Couto, Agualusa, Lídia Jorge, Daniel Sampaio, Nuno Crato, Ana Maria Magalhães, Irene Pimentel, Maria José Morgado, Saldanha Sanches, Júlio Machado Vaz, Pedro Rosa Mendes ou Carlos Fiolhais.
Alem do mais, Isabel Castanheira ajudou sempre os autores locais na divulgação das suas obras.
Com a Gazeta das Caldas a livreira co-organizou várias iniciativas, entre elas dois suplementos especiais sobre o Zé Povinho e Bordalo Pinheiro.
Reconhecida, a cidade das Caldas da Rainha atribuiu a Isabel Castanheira uma medalha de ouro. E a Assembleia Municipal deu-lhe um louvor pelo trabalho desenvolvido em prol da Cultura. Os Rotários das Caldas já a distinguiram como Profissional do Ano e a BookTailors e a Câmara Municipal da Povoa do Varzim deram-lhe o prémio nacional para a Melhor Livreira. “Todos os prémios enchem-me de orgulho”, disse a responsável. Por sua sugestão, também Lobo Antunes e José Saramago foram distinguidos com a medalha de ouro das Caldas da Rainha.

Em risco de fechar

“A livraria é um estabelecimento comercial e o seu propósito é a venda.  Se esse objectivo não se torna possível, temos que pensar se é exequível continuar…”. Palavras de Isabel Castanheira que acrescenta que as primeiras dificuldades foram sentidas em 2008. Às grande mudanças que vive o sector livreiro prendem-se com novos processos de gestão e com o facto de hoje o livro ser encarado “como um produto”. As novas plataformas tecnológicas permitem agora difundir o livro em formato digital e esta desmaterialização está também a prejudicar as livrarias tradicionais.
“As mudanças tecnológicas apanharam a minha geração desprevenida e à medida que a tecnologia avança vai-se perdendo algo muito importante que são os valores”, afirmou.
Há ainda outro aspecto que é o consumidor comprar sempre onde é mais barato e a concorrência no mundo dos livros nem sempre ser leal. “A lei do preço fixo do livro é violada durante todo o ano”, disse Isabel Castanheira, acrescentando que o melhor, de facto, seria a liberalização do sector, que na prática já existe, “mas não está regulada”.
A empresária diz que também outros comerciantes das Caldas estão a sofrer o mesmo que ela. Por isso, diz que a cidade tem de pensar no caminho que quer tomar pois “ninguém quer uma cidade deserta, ignorante e feia”.
Atenta ao que a rodeia, Isabel Castanheira mostra-se preocupada com as notícias do encerramento de escolas e da falta de entendimento entre a cidade e a ESAD.
Segundo Isabel e o seu irmão António José Castanheira, a livraria 107 “não deve um tostão a ninguém e queremos continuar assim enquanto a livraria durar. Este é um princípio basilar do qual não abdicamos”, remataram.

 

Cronologia

1976 – Abre a Livraria Loja 107 na R. Heróis da Grande Guerra
1980 – Começam as tertúlias literárias. Entre os primeiros autores convidados estão Beatriz Costa, Baptista Bastos, António Barreto e Mário Zambujal
Anos 80 – Abertura de uma sucursal no centro comercial Drugstore 23 junto à Farmácia Rosa,
1990 – Grande remodelação tendo o espaço aumentado para mais do dobro
Anos 90 até à actualidade – A vinda dos mais consagrados autores da literatura portuguesa desde Saramago, Lobo Antunes, Mia Couto, Agualusa. Uma atenção constante aos autores locais promovendo a edição obras das mais variadas áreas.
2011 – A atravessar graves dificuldades económicas que podem levar ao seu encerramento