A Loja 107

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Há nas páginas dos livros uma promessa de eternidade, expressa na antiga frase latina scripta manent.
Inspirado neste conceito, Jorge Luis Borges no conto A Biblioteca de Babel compara o Universo a uma Biblioteca, infinita, no tempo e no número dos seus livros, antevendo a sua continuidade para além da extinção da espécie humana: «suspeito que a espécie humana, a única, se extinguirá e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta.»

O mesmo autor, na Parábola do Palácio, fala da palavra dita por um poeta, que lhe proporcionou a imortalidade e a morte, porque continha em si todo o Universo, e de como ela se perdeu, tornando-se a eterna busca de todos os poetas que lhe sucederam.
Metodicamente ordenados na estante duma livraria, para aqueles que não os amam os livros podem parecer meros objectos. Pura ilusão. Encerram nas suas páginas mundos mágicos, recantos secretos, aventuras, paixões impossíveis, alquimia, ciência, sabedorias antigas, tudo o que torna o sonho maior do que a vida.
Tal como a biblioteca, a livraria pode ser um recanto onde se sente toda a magia dos seus livros, ambiente de cumplicidade e de silêncio em que nos abrigamos do bulício ruidoso das ruas, como quem procura e encontra uma pausa, uma breve ausência do mundo que ficou à porta.
A Loja 107 foi sempre esse recanto que faz tanta falta a qualquer cidade. Por ali, entre gatos com nomes de poetas e de dramaturgos, bichos mitológicos e caricaturas de Bordalo Pinheiro, memórias e fotografias de escritores, a Isabel Castanheira, com um sorriso generoso, oferecia-nos um universo onde se reflectia a alma colectiva que nos identifica como caldenses.
Tal como a biblioteca, a livraria beneficia da promessa de eternidade dos livros que a habitam. Por isso, pensamos que não morre e surpreendemo-nos, consternados, quando isso acontece.
Aconteceu no n.º 107 da Rua Heróis da Grande Guerra. Uma livreira apaixonada pelo seu trabalho, travou muitas batalhas numa guerra perdida, contra o nosso desinteresse, contra a iliteracia que nos empobrece, contra as grandes superfícies onde se oferecem livros entre cosméticos e detergentes, com rótulos apelativos e promoções ruidosas.
Foi uma luta solitária e desigual, perante a indiferença da cidade ali tão perto. Faltou-nos a grandeza de alma que nos faz cerrar fileiras quando um dos nossos cai em combate. Bastava mantermos o hábito de procurar sempre qualquer livro, no local onde a cidade se encontrava com a magia das suas origens: águas efervescentes, bichos mitológicos, caricaturas de Bordalo, e tantas outras histórias que ficam por contar.
É tarde. Vamos sentir a imensa falta. Obrigado Isabel.

Carlos Querido