Sem nunca ter recebido subsídios públicos ou privados, contando apenas com a boa vontade de todos os artistas que colaboram, a associação P. Bernardo mantém um ritmo imparável de actividade cultural que tem vindo a crescer de ano para ano e obtendo o reconhecimento nacional e internacional.
No passado dia 3 de Dezembro, a associação inaugurou no Centro de Artes de Sines (CAS) uma exposição com peças da colecção da associação, mas também outros trabalhos criados propositadamente para este evento, que vão estar patentes até 28 de Janeiro de 2012. No total, participam nesta exposição cerca de 80 artistas e quase 200 peças.
“Muito nos honrou o convite que nos foi feito por esta instituição para mostrarmos a nossa colecção“, comentou Pedro Bernardo, o mentor da associação P. Bernardo, que foi criada em 2009 devido à necessidade de dar um carácter formal às actividades promovidas na Casa e Museu Bernardo.
Segundo o responsável, esta não é uma exposição fechada e tem estado a ser constantemente actualizada. “Têm-nos dito que o que levámos para Sines é diferente do que tem ali sido mostrado. Creio que as expectativas foram atingidas“, afirmou Pedro Bernardo.
Actualmente a associação faz parte de uma rede ibérica de espaços culturais independentes, criada em Burgos e que tem como objectivo a colaboração entre estruturas, portuguesas e espanholas, com objectivos semelhantes.
Muitas das exposições que ali se realizam são feitas propositadamente para os espaços escolhidos e são inéditas.
No início de 2011 Pedro Bernardo falava à Gazeta das Caldas da forma como têm percorrido “um caminho longo e vagaroso“, mas positivo. Em 2010 tinham realizado 20 eventos, número já ultrapassado este ano. Ao longo de 2011 o nosso jornal foi acompanhando as actividades da associação, por ser a melhor forma de colocar no papel aquilo que por ali se passa.
Mas para acompanhar a intensa actividade destes espaços o melhor mesmo é ir visitando o site museu bernardo.blogspot.com.
Do Art Attack ao Museu
O Museu Bernardo foi inaugurado a 25 de Julho 2007, num primeiro andar no número 16 da rua Engenheiro Duarte Pacheco, exactamente no mesmo dia em que abriu ao público no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, o museu da colecção Berardo. Pedro Bernardo, proprietário do prédio e mentor do projecto, assumiu assim desde o início esta provocação saudável.
Na altura, explicou à Gazeta das Caldas que tinha reparado que o cartaz que saiu antes da inauguração do Museu no CCB continha 13 nomes “só de artistas mortos, à excepção de Paula Rego“. A ideia inicial do Museu Bernardo era a apresentação deste espaço, substituindo os nomes por autores vivos.
Mas ainda há outra relação simbólica para a data. “25 de Julho é o dia em que o meu pai faria anos se fosse vivo“, contou o também artista.
Mas Pedro Bernardo já abria as portas do seu edifício para exposições e performances artísticas, desde os tempos do Art Attack (um projecto que iniciou com Pedro Falcão em 1997 e que tinha como objectivo mostrar jovens talentos).
“É muito gratificante que passado 14 anos este barco continue“, comentou.
Como referência dos primórdios das actividades culturais naquele espaço, em Março deste ano esteve patente uma mostra do artista plástico João Belga, 14 anos depois da sua primeira exposição individual, que aconteceu exactamente no local que viria a ser o Museu Bernardo.
Em 1997, este autor estava a frequentar o terceiro e último ano do curso de Pintura da ESAD (que na altura era bacharelato) quando foi convidado a participar no projecto Art Attack e apresentou uma instalação em que recriava o seu atelier.
Recriando essa primeira presença, em 2011 João Belga apresentou “Atelier 2”, com uma série de trabalhos inéditos de pintura, desenho e fotografia.
João Belga nasceu em Angola em 1968 e até aos 18 anos viveu no Barreiro, mas desde criança que tem uma ligação com as Caldas, que é a terra dos seus avós maternos.
“Aqui nas Caldas vim encontrar condições para o que eu queria, que era ter um espaço para poder pintar, desenhar e experimentar, porque tínhamos o pavilhão enorme da Matel“, recordou.
João Belga salienta que o ambiente na ESAD era diferente do que é agora. “Era o terceiro ano em que a escola estava a funcionar e éramos ainda poucos. Em termos de trabalho permitiu-me seguir uma corrente menos académica e explorar“, referiu.
Na sua opinião, seria importante que todas as entidades culturais, formais e informais, se juntassem e trabalhassem em conjunto. “Devia haver mais diálogo e cooperação entre todos. É muito mais valioso para a cidade se todos colaborarem e funcionarem como um organismo vivo“, concluiu.
Três espaços para eventos e exposições
Para além do primeiro andar, a associação P. Bernardo utiliza ainda uma passagem (ao nível da cave) para a traseira do edifício na rua Engenheiro Duarte Pacheco, ao qual foi dado o nome de Túnel. “É um espaço ‘underground’ onde os artistas gostam muito de expor os seus trabalhos“, referiu Pedro Bernardo. O local foi escolhido albergar o projecto “on tunnel”, no qual são apresentadas exposições fotográficas, com a duração de apenas um dia, de diversos autores, dos mais consagrados aos que nunca expuseram.
A Casa Bernardo funciona numa vivenda na Rua Maestro Armando Escoto, onde todo o espaço é utilizado para exposições e outros eventos. O quintal costuma albergar muitos convívios com artistas e não só.
Este ano todos os três espaços da associação receberam inúmeras exposições e para além disso participaram mais uma vez no Caldas Late Night (CLN). “Aproveitamos essa iniciativa para apresentar artistas de fora porque os de cá têm o resto do ano para se apresentarem“, explicou Pedro Bernardo. No CLN é também habitual a ocupação de outros espaços, para além do museu.
Embora Pedro Bernardo não tenha nenhuma relação com a ESAD, acaba por abrir muitas vezes as suas portas aos artistas que são formados na escola de artes das Caldas. “Tem acontecido tudo muito naturalmente e por vontade própria“, referiu.
No Junho das Artes e Rabiscuits
A associação Bernardo também esteve representada no Junho das Artes em 2011, correspondendo a um convite da curadora Carolina Rito. O desafio foi o de levar a Lagoa de volta a Óbidos.
A maioria dos artistas expôs no Centro de Design de Interiores (CDI), mas João Belga fez também uma intervenção na antiga escola primária da Ferraria, no Bom Sucesso.
O projecto da Ozzy Project incluía também um mapa até ao local, onde estavam assinalados vários locais de interesse que os visitantes deveriam observar. “É bom que exista uma proposta que faça sair de Óbidos e percorrer aquele caminho até junto à Lagoa“, referiu então Pedro Bernardo.
Segundo João Belga, a ideia foi também fazer com que as pessoas se apercebam “das grandes transformações que aquela zona tem sofrido nos últimos anos“.
Enquanto programador convidado, Pedro Bernardo escolheu os trabalhos tendo em conta uma consciência artística da actual situação da lagoa de Óbidos.
Nessa altura tiveram alguns problemas, nomeadamente porque considerarem que o título que quiseram atribuir “foi de alguma forma censurado“. Segundo o programador, houve várias peripécias que fizeram com que a designação “in articulo mortis” não aparecesse em nenhum da informação oficial da exposição que organizaram.
A expressão “in articulo mortis” refere-se aos casamentos feitos à pressa quando um dos noivos está à beira da morte.
Para além disso, Pedro Bernardo também lamentou que tenha sido recusada uma das suas propostas, que era a colocação de uma carrinha intervencionada pelo colectivo artístico Full Moon Gang numa rotunda em Óbidos.
Curiosamente essa carrinha, que tem o nome “Don’t Worry Baby”, que estava no jardim da Casa Bernardo, acabou por ser uma das participações da associação no Rabiscuits, a Bienal de Arte Experimental de Alcobaça.
O prédio onde agora funciona o museu Bernardo é também o edifício onde houve mais participações no Caldas Late Night desde o início desta iniciativa, até porque tem sido sempre habitado por alunos da ESAD ou outros artistas.
Pedro Bernardo diz ter uma relação com o CLN igual ao que tem a datas como o Natal, o Dia da Mãe e do Pai, entre outras. “Eu tento que o Caldas Late Night ou o Natal seja todo o ano“, afirmou, sem entrar em euforias de determinados dias festivos.
Artistas estrangeiros em residência artística
Pedro Bernardo quer ainda aproveitar os apartamentos do edifício onde funciona para albergar artistas nacionais e internacionais.
Em Novembro de 2010 o fotógrafo italiano Stefano Urani iniciou uma residência artística de seis meses no prédio onde está o museu Bernardo.
Esta primeira experiência internacional culminou numa exposição de fotografias com trabalhos que na sua maioria foram realizados nas Caldas da Rainha, que esteve patente na Casa Bernardo.
Foi em Berlim que Stefano Urani conheceu alguns artistas portugueses que estudaram na ESAD e lhe falaram do trabalho que Pedro Bernardo está a fazer nas Caldas da Rainha, com o Museu e Casa que têm o nome do caldense.
Durante um ano Stefano Urani geriu uma pequena galeria em Berlim, onde promoveu exposições de vários artistas, um dos quais Márcio Carvalho, que estudou na escola de artes caldense.
Mais tarde viria a conhecer outros ex-alunos da ESAD numa residência artística naquela cidade. Um deles, Nuno Vicente, propôs-lhe que contactasse Pedro Bernardo para passar uma temporada nas Caldas.
O italiano, que nasceu numa cidade com dimensão idêntica às Caldas, gostou muito da experiência de aqui viver. “É muito prático porque tudo está perto“, mas o que achou mais interessante foi a existência de uma escola de artes (passou muitas horas a ler na biblioteca da ESAD) e a presença de muitos artistas na cidade.
Stefano Urani elogiou o facto de estarem a ser promovidos projectos como os de Pedro Bernardo e os ateliers para artistas nos antigos silos.
“Caldas da Rainha é um sítio especial“, considera, acrescentando que podia ser feito ainda mais para tornar a cidade um local de encontros para artistas.
A intenção de Pedro Bernardo de convidar ainda mais artistas de outros países para residências artísticas nas Caldas “tem muito potencial“, na opinião de Stefano Urani. Ao mesmo tempo que a ESAD atrai os alunos, o museu Bernardo pode atrair artistas de todo o mundo às Caldas.
O italiano chegou a comentar com Pedro Bernardo que “a capital europeia da cultura deveria ser era nas Caldas“, por ter achado que a cidade tem uma vida artística muito activa.
A residência artística de outro italiano, Simone Poltronieri, resultou num trabalho sobre o 16 de Março de 1974. Uma recolha de fotografias e de depoimentos de alguns dos intervenientes do “golpe das Caldas”, que fez parte da exposição que o fotógrafo realizou na Casa Bernardo depois de seis meses nas Caldas.
Simone Poltronieri conseguiu em poucos meses aprender muito sobre a região e o país, para além de ter passado a expressar-se facilmente em português.
No verão a artista sino-canadiana Vienne Chan também fez uma residência artística nas Caldas, mas apenas durante um mês. Nesse período transformou a Casa Bernardo num “labirinto de pesadelos”, através de uma série de vídeo-instalações. A exposição contou com o apoio Clube Português de Artes.
O Museu Bernardo recebeu este ano a terceira edição do seu “micro-festival de vídeo”, que em 2011 teve o título de “Take C”. Mais de uma dezena de projectos foram apresentados durante dois dias.
Recentemente André Banha e Jorge Feijão fizeram uma exposição no Museu Bernardo que também marcou de forma especial aquele local. A peça de André Banha, um “cone” em madeira, atravessava paredes e ampliava-se por uma extensão de três divisões, incluindo uma parte exterior. “Só foi possível fazer este trabalho com alguém com quem temos uma grande cumplicidade“, referiu André Banha.
Pedro Bernardo orgulha-se de receber não só artistas consagrados, mas também outros que fazem a sua primeira exposição na Casa ou no Museu Bernardo “sempre com um critério de qualidade e sem facilitismos“.
Na opinião de Pedro Bernardo, há muitos artistas que são de fora mas que gostam de expor nas Caldas da Rainha porque “sabem que aqui existe um público que gosta de arte e que as coisas são vistas, criticadas e não ficam fechadas“.
“Nas Caldas investe-se muito no ‘hardware’ e pouco no ‘software’”
Pedro Bernardo é crítico na forma como a Câmara das Caldas investe em cultura. “A autarquia gasta, se calhar, quase metade do seu orçamento para o sector no fogo-de-artifício e no concerto do 15 de Maio, imaginando que assim está a dar cultura às pessoas“, referiu, dando
Na sua opinião, é preciso distinguir o que é cultura e o que é diversão. “Devia gastar-se mais em formação e em cultura“, defende. “À medida que o tempo passar, o que é arte continuará a existir e o que não é arte desaparece“, salientou.
Por outro lado, deu ainda o exemplo do milhão de euros que estão a ser gastos em mais um museu no Centro de Artes, quando podiam ser investidos de outra forma na cultura. “Nas Caldas investe-se muito no ‘hardware’ (edifícios) e pouco no ‘software’ (produção artística)“, explicou. Também lamentou que houvesse pouca informação sobre esse novo espaço, referindo nem sequer saber como será o edifício e “quais são os critérios científicos que levaram à sua existência“.
Enquanto isso, há projectos que só sobrevivem devido ao empenho das pessoas envolvidas. Pedro Bernardo destaca exemplos como os Pimpões ou o que está a ser feito nos silos das Ceres, entre outros. “Às vezes basta a boa vontade para que as coisas existam“, comentou, salientando que é importante que as várias estruturas que existem colaborem umas com as outras.
Pedro Bernardo insiste também que a arte não tem que ser elitista e lamenta que as pessoas evitem entrar em museus por entenderem que não percebem o que lá está. “É por isso que o nosso caminho é vagaroso. Temos um ‘exército’ pequeno contra ‘exércitos’ muito grandes como o futebol” e outras indústrias, que “têm um excesso de protagonismo“.