Nelson Cruz: “A essência de ser bombeiro voluntário é pensar nos outros a troco de nada”

0
1038

IMG_0895Nelson Cruz, de 37 anos, tornou-se no passado domingo o primeiro comandante de carreira dos Bombeiros Voluntários das Caldas da Rainha. O novo comandante tem 20 anos de bombeiro, mas leva já 28 de ligação àquela casa, onde chegou com nove para a fanfarra, pela mão de um amigo do pai. Nelson Cruz foi subindo de posto em posto até atingir, agora, o comando da corporação. Esteve nos cinco anos das equipas do anterior comandante, José António, e pretende fazer um trabalho de continuidade. Aposta essencialmente na formação e na motivação da equipa de mais 100 homens e mulheres que compõem a corporação. Elogia a capacidade de resposta do grupo de voluntários que comanda e diz que o corpo tem uma frota de viaturas razoável, muito graças ao bom trabalho que a direcção tem feito, mas também ao grande carinho que a população do concelho nutre pelos seus bombeiros. Uma curiosidade: no espaço de tempo em que esta entrevista foi feita, os bombeiros caldenses foram chamados e extinguiram um incêndio urbano e outro florestal, e ainda saíram em apoio aos bombeiros de Óbidos.

GAZETA DAS CALDAS – Ser bombeiro, como aconteceu?
NELSON CRUZ – Entrei para os bombeiros pela Fanfarra, por via de um chefe que já está no Quadro de Honra que é amigo do meu pai. Foi em 1986, tinha nove anos de idade. Fiz o meu percurso na fanfarra até ir para a escola de recruta dos bombeiros, em 1992. Foi cadete, depois infante e aspirante. Fiz a minha recruta em dois anos, jurei bandeira em 1994. Depois fui concorrendo sempre à categoria imediata. Fui bombeiro de segunda, de primeira, subchefe e já estava no quadro de chefes quando fui proposto para adjunto de comando. De adjunto de comando fui para segundo comandante e agora comandante.

G.C.: Ser comandante acabou por ser uma ordem natural das coisas?
N.C.: Nos 119 anos que a associação vai assinalar, é a primeira vez que acontece o segundo comandante ser comandante e também o comandante ser de carreira. Todos os outros vieram de outras origens, não fizeram carreira de bombeiro.
Tive também o cuidado de formar comando da mesma forma. Os adjuntos de comando já eram os do comandante José António. Acho que têm sido bastante competentes na missão deles. E propus para segundo comandante o subchefe José António Silva, que também tem 20 anos de bombeiro, é conhecedor do serviço e da instituição e é respeitado por todos. Isto resulta noutra situação inédita: todo o comando é composto por bombeiros de carreira.

G.C.: Ser comandante de carreira vai ser uma ajuda no desempenho das funções?
N.C.: Tudo traz vantagens e desvantagens. Por um lado é vantajoso, porque se passámos pelas situações e as vivemos, quando chegamos a um cargo de comando sabemos o que estamos a mandar fazer e quais as dificuldades do que está a ser feito. Temos uma noção diferente das coisas. Por outro lado, quando um comandante não faz carreira de bombeiro também tem vantagens. Não conhece ninguém e vice-versa. Todos me conhecem e sabem como funciono e por vezes podem tentar levar as coisas de outra forma. Mas estou esperançado que o facto de ser de carreira me vá ajudar a desempenhar a função. O facto de todo o comando ser de carreira também nos vai facilitar no teatro de operações, no que é preciso ter mais sangue frio. A experiência que trazemos de bombeiro vai ser vantajosa.
Sinto-me bastante apoiado pelo comando e pela direcção. O meu sucesso, se o tiver, vou devê-lo ao corpo de bombeiros, se este trabalhar bem e se conseguirmos minimizar o sofrimento e salvaguardar os bens de quem vamos socorrer. O meu grande objectivo é saber honrar o corpo de bombeiros que esta associação tem, que é de facto magnífico.

A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO

G.C.: Quais são os principais desafios?
N.C.: O principal desafio é conseguir motivar o corpo de bombeiros, que na sua essência é composto por voluntários. É uma associação muito grande, que em termos operacionais tem profissionais na área da saúde e na central telefónica, mas tem um corpo de bombeiros enorme. E motivar os bombeiros voluntários nem sempre é fácil, porque mesmo o próprio Estado não lhes dá muito. Até há pouco tempo tínhamos isenção de taxa moderadora nos serviços de saúde, agora só temos nos serviços primários. São pormenores que não fazem o Estado ser mais ou menos rico, mas que poderiam apelar tanto à continuidade de quem já é bombeiro, como ao recrutamento.
Depois, o caminho terá que ser o mesmo que fizemos até aqui: muita formação. Ser bombeiro hoje é muito difícil. É uma função com risco permanente e os bombeiros têm que ter conhecimentos técnicos para que se minimizem os erros que criam danos a quem precisa de nós, mas que também colocam em risco a vida do próprio bombeiro.
O comportamento dos incêndios está muito diferente. Antigamente os terrenos eram limpos, hoje ninguém limpa, o que torna os incêndios mais agressivos. Temos que saber onde colocar os carros, quando podemos atacar o incêndio e quando não podemos. Nos incêndios urbanos é preciso saber em que condições se pode entrar no edifício pois, por vezes, a visibilidade é nula. Em que condições se pode fazer a ventilação e a extinção.
Ao nível dos acidentes a mesma coisa. As viaturas cada vez têm mais dispositivos de segurança e não se pode cortar o carro de qualquer maneira. É precisa uma preparação muito técnica e muito perfeita para desempenhar bem a sua função.
Nos graduados também é preciso ter uma formação de chefe de equipa, que é mais direccionado para a liderança e relação humana, para conseguir trabalhar a mente das equipas.

G.C.: Como classifica os meios humanos do corpo de bombeiros?
N.C.: Temos um corpo de 110 bombeiros no activo em que o mais velho deve estar com 57 anos de idade. Temos um grupo de pessoas jovens e activas, com uma formação muito considerável e pessoas com uma vasta experiência em qualquer tipo de ocorrência. Em termos operacionais posso estar sempre descansado porque estou munido de um grupo de bombeiros experiente que dão quase sempre uma resposta cabal. Enquanto elemento de comando, nunca tive necessidade de ir ao teatro de operações antes do que está regulamentado e estou certo que enquanto comandante também não vou ter, porque os nossos bombeiros são pessoas de bom senso, conseguem perceber se é necessária ou não a presença do elemento de comando.

G.C.: E os meios materiais?
N.C.: Carências todas as associações têm. Mas penso que os bombeiros das Caldas estão num patamar confortável. Em termos de equipamento de protecção individual, não são muitas as corporações em que cada bombeiro tem o seu capacete florestal, o seu capacete urbano, o seu fato Nomex completo, três ou quatro fardas de trabalho. Vamos adquirir – é uma legislação recente – os equipamentos de protecção individual florestal, à semelhança do que já há para o incêndio urbano. Houve, através das comunidades intermunicipais, concursos para a aquisição desses fardamentos e vamos ser contemplados com perto de metade da verba necessária. A associação terá que suportar o restante, mas vamos ter esse equipamento brevemente.
No que diz respeito a viaturas, temos duas ou três mais antigas, mas em bom estado de conservação. É intenção da direcção conseguir mais uma viatura florestal. Também está a tentar adquirir mais uma ambulância de socorro. Gostaríamos de ter um carro ou outro mais recente, mas estamos num patamar razoável.
Esta direcção tem feito um esforço e um trabalho notáveis pois já conseguiu adquirir pelo menos seis ou sete viaturas. E os recursos são sempre reduzidos. Também é justo dizer que a população caldense, nomeadamente a das freguesias rurais, tem uma estima e uma consideração por nós que não tem explicação. Fazemos um cortejo de oferendas que todos os anos ronda os 100 mil euros, que tem sido fundamental para termos o equipamento que temos e as boas condições que temos.

ENTREAJUDA ENTRE CORPORAÇÕES VIZINHAS

G.C.: O concelho das Caldas é grande e só tem esta corporação. Isso cria algumas dificuldades, por exemplo quando é preciso chegar às povoações mais distantes?
N.C.: Claro que sim, é um concelho muito grande, com cerca de 255 km2, quase metade até é florestal. Como é uma zona um pouco mais húmida, o comportamento do incêndio é diferente. Mas também arde e com agressividade. Nos meus tempos livres faço reconhecimento de caminhos, e brevemente irei fazer uma instrução nesse sentido, para percebermos qual é o melhor caminho para chegar a determinado local e se os caminhos têm condições de segurança. Deixa-me preocupado o facto de haver muita floresta com muito mato e sem acessos. É fundamental não deixar o incêndio evoluir, é preciso haver uma resposta imediata, porque um incêndio grande acontece quando não se consegue segurá-lo a tempo.
Apesar de sermos a única corporação do concelho, estamos rodeados de outras corporações nos limites do concelho e sempre que precisamos comunicamos com o Comando Distrital de Leiria e solicitamos esse apoio. Tanto em caso de incêndio, como de socorro, é feita triangulação e, por exemplo, se a ocorrência for em Santa Catarina, que é dos pontos mais distantes do concelho, temos ao lado a corporação da Benedita, que vai logo ajudar, ou São Martinho, se for, por exemplo, em Salir do Porto. Nós vamos sempre, mas por vezes até chegamos e já essas corporações de bombeiros socorreram. É bom para a pessoa que precisou e é esse o grande objectivo. Cada vez há mais entreajuda entre corporações, o que é fundamental. Nas ocorrências que não são tão graves, vamos e tentamos chegar o mais rapidamente que conseguimos.

G.C.: Para além do socorro e dos incêndios, que mais valências tem o corpo de bombeiros das Caldas?
N.C.: Temos o grupo de socorros a náufragos, que para além de todo o ano prestar socorro sempre que é solicitado a náufragos na nossa zona costeira, também faz prevenção aos sábados e aos domingos na praia da Foz do Arelho. Temos três motas de água, dois barcos, um grupo de nadadores salvadores. São pessoas com carta de navegação para poderem timonar as embarcações. É um grupo específico com muito valor, que ao longo de muitos anos (estive quase 12 anos nesse grupo, fui nadador salvador e timoneiro de embarcações). É um serviço difícil, porque o mar da Foz exige muito respeito, mas é gratificante.
Temos também um grupo especial de salvamento em grande ângulo, pessoas treinadas com material específico para resgatar pessoas em falésias. É uma formação difícil, exige muito esforço e tem riscos inerentes por ser trabalho em altura. É um grupo útil até nas situações mais básicas, como um animal que cai num poço ou num buraco em que é difícil chegar.

G.C.: O Estado cortou nos apoios ao transporte de doentes, isso afecta em termos orçamentais a associação?
N.C.: Antes de comandante também sou encarregado geral e tenho perfeita noção das contas da associação e das dificuldades. Ao cortarem apoio a pacientes que normalmente iam connosco, provocou uma descida significativa na facturação. O que fizemos foi adaptar-nos à realidade e fazer uma rentabilização dos meios. Temos um sector de transporte de ambulância muito coordenado. Temos uma operadora de central só para essa parte. Não conheço mais nenhuma corporação que tenha duas centrais telefónicas em funcionamento durante o dia. Apesar dos cortes, as coisas não estão a correr mal. Se continuarem assim estão num patamar aceitável.
G.C.: Os bombeiros das Caldas têm feito um trabalho directo com as crianças, com a escolinha de infantes e cadetes. Isso tem tido resultados?
N.C.: A escolinha de infantes e cadetes foi criada pelo comando anterior e vamos dar continuidade. A nossa esperança é essa e já temos alguns resultados. Temos os infantes que são os mais pequenitos, depois os cadetes, e o objectivo é que vão depois para estagiários, que façam a escola de recruta e depois sejam bombeiros. Enfim, temos um viveiro de bombeiros. Temos esperança que sejam os bombeiros de amanhã e quem sabe se não temos ali um futuro comandante.

G.C.: Falsos alarmes nas Caldas da Rainha, há?
N.C.: Já houve mais. Em termos de classificação, temos que classificar como falso alarme quando, por exemplo, alguém nos liga porque viu um clarão e eram das luzes da pedreira. As brincadeiras, como havia muito há uns tempos atrás, felizmente já não existem. Os jovens hoje estão mais sensibilizados para a missão dos bombeiros e que não se pode brincar, porque podem ser precisos a sério e têm que estar disponíveis para isso.

G.C.: O que é, para si, ser bombeiro?
N.C.: A essência de ser bombeiro é pensar nos outros, e ser bombeiro voluntário é fazê-lo em troco de nada, só pelo respeito e pelo amor ao próximo. Quem vem para cá é porque quer apagar os fogos, minimizar os estragos. Se há um acidente, quer socorrer, se alguém em dificuldades no mar, quer ir salvá-lo. Quer contribuir para que as pessoas fiquem bem. E a grande maioria dos bombeiros consegue fazer tudo isto. É um sentimento que nem todas as pessoas têm, por isso os bombeiros são pessoas singulares. Ser bombeiro é muito difícil. Para além do esforço físico, é preciso muita força psicológica, porque não é permitido errar. Independentemente do estatuto ser voluntário, é preciso ser muito profissional. Mas quando se faz as coisas por gosto, faz-se com o maior brio possível, e se calhar quem faz as coisas por obrigação, se calhar não se empenha tanto.

Joel Ribeiro

jribeiro@gazetadascaldas.pt