Cerâmica industrial de mesa e decorativa transformou-se em “neo-artesanal”

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1-autoresCom o intuito de dar a conhecer as mudanças que aconteceram no sector da cerâmica decorativa e de mesa, nos últimos 30 anos, em Portugal, José Luís Almeida Silva (do Cencal) e Manuel da Bernarda, industrial ligado a empresas de cerâmica de Alcobaça participaram numa sessão que teve lugar no Museu de Cerâmica, no âmbito das Jornadas Europeias do Património.

Em 2013 Portugal foi o maior produtor de louça de mesa e decorativa na Europa e “se o país continuar a produzir com qualidade – apostando na inovação e  recuperando algumas tradições – a cerâmica portuguesa poderá estar a preparar-se para viver dias mais risonhos”. Esta foi uma das afirmações de José Luís Almeida Silva, que deu a conhecer a uma pequena plateia de estudantes, formadores e profissionais do sector como é que a área da cerâmica decorativa e de mesa tem sobrevivido e ultrapassado a crise que se vive no país na última década.

Designada “1985 – 2015 – 30 anos na indústria cerâmica portuguesa – passado, presente e futuros”, a sua apresentação deu a conhecer vários dados estatísticos como, por exemplo, que em 1995 existiam em Portugal cerca de mil empresas – da área da cerâmica de mesa e decorativa – e que empregavam mais de 25 mil trabalhadores. Em 2012 esse número situa-se um pouco acima dos cinco mil. Para se ter uma ideia mais clara, basta ver que em 1975, existiam muito poucas empresas deste sector especifico, no entanto, “estas empregavam muita gente (10 mil pessoas) e em média, cada empresa possuía 135 trabalhadores”. Em 2012 passaram a ter apenas uma média de oito trabalhadores.

A estes dados acresce ainda o facto de haver uma grande concentração do volume de negócios, já que na actualidade apenas três empresas possuem mais de 250 trabalhadores sendo também responsáveis por 30,5% do volume de negócios total desta indústria. “Há apenas três empresas que têm um terço do negócio”, disse o investigador, referindo-se à Vista Alegre, à Matcerâmica e à Spal. No entanto, as empresas com menos de 10 trabalhadores e que eram há dois anos 837, representam 8,8% do volume de negócios total. As unidades industriais que têm mais de 50 trabalhadores (27 em 2012) têm agora um volume de negócios correspondente a 71,8%

Doutorado na área da Economia e sendo especialista na área da Prospectiva Estratégica, José Luís Almeida Silva deu a conhecer os vários cenários que tinha antecipado no final dos anos 90 para esta área especifica da cerâmica portuguesa e como de facto “se veio a confirmar o pior dos cenários com grande parte das unidades industriais a fechar, atingindo centenas e centenas de pessoas, arrastando-as para o desemprego”.

Um pouco por todo o lado nos países desenvolvidos, as grandes unidades industriais deixaram de produzir cerâmica de mesa e decorativa. Até as melhores fábricas europeias que o orador visitou como, por exemplo, a Rosenthal ou a Wedgwood, abandonaram a produção, deslocalizando-a para outros países. A Rosenthal que “era a melhor fábrica de sempre, acabou por manter a fábrica, a marca e o conceito, mandando fazer toda a produção noutros países”, acrescentou.

O investigador deu a conhecer outros exemplos, como a centenária fábrica alemã Meissen, que  “era produtora de porcelana de alta qualidade e mantém a fábrica como propriedade do governo regional, para produções de referência mundial”. Outro exemplo dado foi a alemã Villeroy & Boch que também deixou a produção própria da cerâmica decorativa e actualmente, em termos de produção, dedica-se principalmente às áreas do revestimento e sanitários, “que hoje estão com quase todas as áreas robotizadas, dando muito pouco emprego”.

O que fazer perante este cenário? Como pode a cerâmica dar a volta? “Produzindo produtos de alta qualidade para nichos de mercado e ligando o sector ao turismo, procurando aliar também a industria às visitas culturais e à criação de parques temáticos”, afirmou o orador.

Na sua opinião, vivem-se dias de alguma recuperação com os produtos portugueses a ser internacionalmente reconhecidos, ou seja, “como não há produção de cerâmica na Europa, esta é uma boa oportunidade para as firmas que conseguiram ultrapassar os anos mais difíceis”. Segundo José Luís Almeida Silva, hoje em dia  as empresas “têm que trabalhar em rede, valorizar os recursos humanos e também trabalhar no valor acrescentado das suas peças, que se devem destinar a nichos de mercado”.

É preciso também alterar a política fiscal que afecta o sector, como se faz noutros países para os sectores tradicionais. “A cerâmica de qualidade para o mercado interno não pode ter o IVA a 23%. È preciso que baixe para a taxa mínima como se faz, por exemplo, na Áustria”, informou o orador. Entre outras premissas, defende o convite permanente a criadores internacionais para que inovem nas formas e decorações da produção industrial, decorativa e de mesa.

Apesar dos dias negros que se viveram na última década no sector, há algumas notas de esperança. Em primeiro lugar, a cerâmica feita na China passou a ser taxada (aplicação de direitos anti-dumping sobre as importações de artigos de cerâmica da China para a Europa), o que teve consequências directas nas exportações de cerâmica portuguesa.

Ao longo de 2013 as exportações cresceram 5% e nos dois primeiros meses de 2014 aumentaram 15%. Também o Cencal, que formou durante anos técnicos para a indústria cerâmica, viu baixar a procura de jovens para essa área específica, mas lançou agora um curso para Técnico Especialista em Ofícios de Arte Cerâmica e Vidro.

 

A CHINA DENTRO DO CONCELHO DE ALCOBAÇA

 

O arquitecto Manuel da Bernarda, fundador da fábrica Cerâmicas S. Bernardo, em Alcobaça, deu a conhecer alguns aspectos ligados à manufactura e à grande paixão que o liga ao acto de criar novas peças e inovar sempre nas formas e nas decorações. Também se queixou de vários aspectos menos positivos, como o aumento do custo da energia ou a falta de apoios estatais às iniciativas culturais. Referia-se, por exemplo, ao facto de ter desenvolvido um projecto de residências artísticas convidando artistas a trabalhar na Perpétua, Pereira & Almeida, Lda. – a sucessora da Cerâmicas S. Bernardo – “e de não ter conseguido obter nenhum apoio do Estado”.

Manuel da Bernarda, 73 anos, continua a dirigir o sector do design da sucessora da Cerâmicas S. Bernardo e passou em revista a evolução do sector em Alcobaça, tendo dado a conhecer que na altura em que existiam muitas fábricas “tínhamos a China dentro do próprio concelho pois as fábricas imitavam-se umas às outras sem terem custos de desenvolvimento”. Depois a invasão da cerâmica oriunda dos países asiáticos provocou uma “grande erosão”, tendo forçado o redimensionamento de muitas empresas da região e ao encerramento de muitas outras.

Hoje as coisas mudaram e “já há cooperação entre as empresas, mas continua a ser necessário continuar a investigar e estar sempre a inovar”.

Na Perpétua, Pereira & Almeida, Lda., mesmo sem apoios nacionais, está a decorrer um ciclo de residências artísticas com ligação ao Museu Soares dos Reis no Porto, onde regularmente são dadas a conhecer as novas produções de artistas plásticas que vão à fábrica alcobacense fazer novas criações. Algo muito importante, que o arquitecto manteve ao longo da sua vida e deixou como nota a quem assistiu a esta conferência foi que a “cerâmica é para ser feita com emoção” e ao longo da sua vida, a criação artística, a pesquisa e a investigação que sempre fez e promoveu têm-lhe trazido “o reconhecimento do público”.

 

Natacha Narciso

nnarciso@gazetadascaldas.pt