«Húmus» de Raul Brandão

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ImageNão por acaso dedicado ao Mestre Columbano (Bordalo Pinheiro), este clássico de Raul Brandão (1867-1930) é a paisagem povoada de uma Vila imaginada mas real: «Mora aqui o egoísmo que faz da vida um casulo e a ambição que gasta os dentes por casa, o que enche a existência de rancores e, atrás de ano de chicana, consome outro ano de chicana». Joana, a criada («Serviu primeiro na vila, serviu depois na cidade») vive na casa da D. Hermengarda: «Faz rir e faz chorar. Já ninguém estranha que a Joana aguente e a manhã a encontre de pé, a rachar lenha, a acender o lume, a aquecer a água. Mal se compreende que, depois de uma vida inteira, esta mulher conserve intacta a inocência de uma criança».
Na Vila cartografada de «Húmus» a vida é um intervalo entre o sonho e a dor, um edifício de palavras: «Construímos ao lado da vida outra vida que acabou por nos dominar. Vamos até à cova com palavras. Submetem-nos, subjugam-nos. Pesam toneladas, têm a espessura de montanhas. São as palavras que nos contêm, são as palavras que nos conduzem.» Entre a vida e a morte, entre tabiques e palavras, surge o espanto do Mundo: «Só a insignificância nos permite viver. Sem ela já o doido que em nós prega tinha tomado conta do mundo».
O Gabiru (ridículo, grotesco, caótico) é uma voz do livro. Começa por avisar («a sensibilidade não é individual, é universal. Basta ferir a sensibilidade que vai dos nossos nervos até à Via Láctea para transformar as noções do tempo, do espaço, da vida e da morte») e por fim adverte: «O mistério é este e mais nenhum: é exprimir como o que é espírito se transforma em matéria, como a poeira se condensa, como a alma se faz corpo».
Entre a vida e a morte existe o sonho («o nosso sonho é não morrer») mas o Gabiru insiste na vida: «viver é que é bom, viver com o instinto, como os ladrões e os bichos, os malfeitores e as feras, sem pensar, sem sonhar, sem palavras nem leis, até cair a um canto, morto e feliz». Mas ao viver correm-se riscos de ser preso mas «Na cadeia também se come pão.» Perto do fim deste livro maravilhoso ouvem-se gritos e lágrimas («os ladrões das estradas desatam a chorar») e o Gabiru pergunta («Ouves o grito?») para logo a seguir decretar: «É preciso matar segunda vez os mortos.»
(Edição: Porto Editora, Colecção Portuguesa, Apresentação: Lilaz Carriço)