«Lei seca» de Pedro Mexia

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ImageNa linha de antepassados ilustres, Pedro Mexia (n.1972) nestes «Diários 2009-2012» recupera a miscelânea literária tal como já fizeram antes Camilo Castelo Branco («Narcóticos»), Brito Camacho («Pó da estrada»), Irene Lisboa («Esta cidade!»), Ruben A. («Páginas»), Carlos de Oliveira («Aprendiz de feiticeiro») ou Fenando Venâncio («Último minuete em Lisboa») isto sem esquecer os «Tablóides» de José Rodrigues Miguéis no «Diário Popular». Em 1978 Jacinto Baptista, seu director, afirmou-me «O jornalista é o historiador de todos os dias». Julgo ser esse o sentido da intervenção de Pedro Mexia: juntar em livro o que há cem anos se chamava «sueltos». Os jornais foram substituídos pelos «blogs» mas a ideia mantém-se – recuperar do pó do esquecimento os textos que se julga poderem resistir ao tempo e passar à posteridade.
As anotações breves partem do olhar sobre o autor («Já sei que de mim nada fica mas não acho a vida menos digna de ser vivida por causa disso»), o seu estado («celibatário é o homem que conseguiu não encontrar uma mulher») e o seu pessoal pessimismo («Ser pessimista é sobretudo cansativo. Todos os dias o mundo confirma a ideia que temos do mundo») mas o foco é a vida em sociedade: «O meu melhor leitor é aquele cavalheiro que um dia me disse: Não me interessa nada a sua vida mas gosto muito do que escreve».
Pedro Mexia é um homem de palavras – «Leio num dicionário que «aceitação» é antónimo de «resistência». Talvez por isso tão pouca gente compreenda esta minha atitude que se podia definir como «uma resistência feita de aceitação» ou «uma aceitação feita de resistência». Como tal, não fica indiferente ao chamado «meio literário» e aos seus ridículos dramas numa espécie de Sporting-Benfica («Se lês Pessoa não leias Pascoaes») em que é tudo a fingir: «José Gomes Ferreira escreve no seu diário que Carlos de Oliveira lhe disse que Fernando Namora contou que Álvaro Salema ficou furioso com Ferreira de Castro porque este pediu ajuda a Augusto de Castro». Tudo isto tem a ver com o ficcionista argentino Fogwill: «A literatura não conta uma história, conta como se conta uma história». Pelo meio surge a história com António Lobo Antunes que, depois de autografar um livro («Para Pedro Mexia, porque gostei do seu livro»), numa entrevista a João Céu e Silva diz que não o conhece.
Na miscelânea de 374 páginas fica demonstrado o eclectismo de Pedro Mexia que tanto se aventura na dissertação sobre Sófocles como pela revisitação a Kierkegaard. Ou ainda por um olhar sobre a fotografia: «as suas fotografias nunca mostram pessoas porque as pessoas entram nas fotos quando as vêem». Por mim gosto das citações seja da carta de Cesário Verde («Eu não sou nem bom nem generoso como tu julgas») ou de um poema de Raúl de Carvalho: «Vem (serenidade) e defende-me / da traição dos encontros».  Um amigo contou-me que começou a ler este livro no Colégio Militar e só parou na Damaia. De Cima, claro. Este volume só pode ser lido em cima, de cima, acima. Porque embora pela sua natureza se integre na vulgaridade quotidiana, ele felizmente não faz parte dessa mesma vulgaridade.
(Editora: Tinta-da-China, Capa: Vera Tavares)

José do Carmo Francisco