Passou o Carnaval

0
533

Passou o Carnaval sem meter a colher nas suas comidas, pois já o tinha feito em anos anteriores, lembrando que a sua característica diferenciadora, a abundância, é como que um criar de reservas para a abstinência da Quaresma. Mas deixei-me surpreender pelos ecos do encontro gastronómico da capital espanhola ocorrido no princípio do mês, denominado Madrid Fusion. Três dias de um evento no qual participaram uma centena de cozinheiros e onde se revelaram técnicas e receitas que, dado o período, quase “seria pré-carnavalesco”.
Ao insuspeito El País mereceu como manchete “Sangriento y delicioso”. Concentrou a inovação de uma centena de cozinheiros espanhóis e internacionais. A galeria dos feitos começou com a utilização culinária do sangue dos peixes, por parte do cozinheiro de Cádiz Ángel León (único espanhol com nova estrela do Guia Michelin 2015).
Também reluziu o sangue, embora cárnico, na prática da filosofia gastronómica do basco Andoni Luis Aduriz, o “melhor chef do Arco Atlántico 2014”, homenageado pela “exportação” de alunos do Mugaritz (sito em Aldura Aldea, 20 – Errenteria – Guipúzcoa), ao longo dos 17 anos de existência do restaurante. Há-os repartidos pelo planeta (entre eles a dinamarquesa-boliviana Kamilla Seidler, o chileno Rodolfo Guzmán, ou o brasileiro Rafael Costa e Silva), tendo sido premiado pela sua influência na cozinha mundial.
O auto-intitulado “Chef del Mar”, que conseguiu a categoria de alimento para o plâncton, base chave das suas criações, mostrou uma vez mais como aquilo que não se utiliza pode, de facto, ser apetitoso. Reivindicando a valorização dos peixes pobres, Ángel León expôs a bondade do sangue do mar. Com a técnica japonesa que permite sangrar o peixe vivo (mediante uma agulha que se pasa pela medula do peixe), León extraiu o fluido vermelho de um robalo (que pouco antes nadava num aquário colocado em cena) e cozinhou-o (sem ultrapassar 65 graus porque coagula) para transformá-lo num molho cremoso. Foi o condimento para um ovo previamente trufado 15 dias com plâncton (a porosidade da casca permite estas experiências) que acompanhava o lombo do robalo e uns chicharros “morena” (a pele é curada ao ar e borrifada com aceite virgem). Resultado: sabor a mar em toda a sua intensidade. “Nem os asiáticos, que aproveitam tudo, usam o sangue assim”, gabou-se León.
Andoni Luis Aduriz, esse, apresentou nuvem esponja (feita de sangue de porco) com cebolada e pinhões.
Para José Carlos Capel, presidente de Madrid Fusion, “a sua cozinha é um exemplo de refinamento, técnica e pensamento”. Vários filhos de Mugaritz (entre eles Paco Morales, Rodrigo de la Calle ou Vasco Coelho) elogiaram o chef, que revelou com pensamentos e receitas os mecanismos da criatividade. O componente genético que nos faz “supergustadores”, o peso da cultura, a forma de vermos o mundo e o jogo do insuspeito e do imprevisível articularam a mostra de pratos. Um limão confitado que se pode comer inteiro, una rebuçado de queijo Idiazábal que esconde uma anchova  e acepipes enganadores em que se come uma falsa pele de cordeiro, o pescoço lustroso dum pato ou um creme catalão de frango e lagosta, além de uma nuvem que parece chocolate espumoso, mas que na realidade é sangue de porco.
Aduriz já executou anteriormente, com sangue fresco de porco um macaron, o famoso doce redondo transformado, em salgado, inspirado na morcela. No novo prato o sangue é fervido pois o sangue como ingrediente possui as mesmas qualidades da clara de ovo. Todas as confecções que se podem fazer com clara de ovo emulsionada, montada, podem fazer-se com sangue, pois tem igualmente albumina.

João Reboredo
joaoreboredo@gmail.com