«Felicidade na Austrália» de Liberto Cruz

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ImageLiberto Cruz (n. 1935), preside à direcção da Associação Portuguesa dos Críticos Literários, foi professor em França (Rennes, Nantes, Vincennes), fundou a Revista Sibila e é autor de diversos trabalhos e estudos sobre Ruben A., Júlio Dinis, António José da Silva, José Cardoso Pires, Blaise Cendrars e Marquês de Sade. Estreia-se na ficção em 2014 depois de ter visto a sua «Poesia Reunida» (1956-2011) publicada pela Editora Palimage.
O título deste livro com 14 contos vem de um poema de Álvaro de Campos mas pode ser a resposta a um título de Camilo Castelo Branco: «Onde está a felicidade?». Todos o sabemos: a felicidade não existe. Existem sim na nossa vida alguns momentos felizes. Vale a pena procurá-los para que a nossa existência não seja apenas «um nome/duas datas/um retrato» como escreveu o poeta Victor Matos e Sá.
Estas 14 histórias visitam um certo tempo português cinzento e mesquinho quando Salazar dizia «Está tudo bem assim e não podia ser de outra forma!». Um dos protagonistas até afirma: «Deus não tem satisfações a dar a ninguém. É assim uma espécie de Salazar em ponto grande e quem não está com ele um dia lixa-se.»
No conto «O eléctrico» explica-se bem esse sentimento português do sonho adiado, da velha aspiração bairrista nunca concretizada. Neste caso os deste lado de Sintra (Estefânia, Chão de Meninos, Fetal, Alto de São Pedro, Arrabalde e Vila) aspiram a ter um eléctrico como os do outro lado tinham até ao Banzão e à Praia das Maçãs. Mas aqui o eléctrico só aparecia nas brincadeiras do Carnaval com uma carrinha transformada e dois foliões fardados de cobrador e de motorista.
As 14 histórias são exemplares pois embora pertencendo à geografia de São Pedro (Sintra) a sua moral é nacional e não local. O pequeno mundo é um espelho do grande mundo. Seja nos lances inesperados («Um tio do senhor Ezequiel morreu na América e deixou-lhe uma grande fortuna») seja nas mais incríveis histórias: «O filho do Tomé tinha sido condenado a dois anos de cadeia por ter enganado uma rapariga e não querer casar com ela».
Há também muita ironia à solta nestas histórias onde é possível brincar com expressões com o «Angola é nossa» ou «A bem da Nação». Em «Os falsos Pides», o tipógrafo Nunes, leitor do «Avante!», perdeu os dentes de cima na PIDE mas depois do «25 de Abril» o Crispim e o Deodato (os falsos pides) foram presos pela PM e devolvidos à origem. Dias depois do regresso quatro desconhecidos partiram-lhe os dentes e nunca foram descobertos – «A bem da Nação».
(Editora: Estampa, Capa: Helder Alves, Foto: Raúl Cruz)