Capital psicológico – Digam à Cinderela que o sapato dela está aqui

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sapato_cinderelaExistem muitas preciosidades na nossa região. Na minha opinião, uma delas, preciosidade paisagística, é a Lagoa de Óbidos, em particular a zona da aberta – que liga a lagoa ao mar – e que foi recentemente restabelecida. Num dos passeios domingueiros que fiz recentemente à lagoa, encontrei mais uma preciosidade, desta vez inesperada e de outra natureza: um sapato da Cinderela (como podem ver na fotografia).
Mas, ainda que na imagem se destaque o sapato, o que me pareceu mais interessante não foi o sapato, mas sim a história em seu redor: 1) alguém ter pendurado o sapato com uma guita ao suporte em madeira, 2) esse ou outro alguém ter escrito o pequeno bilhete a dizer “são da Cinderela”, e o melhor de tudo 3) ainda que por segundos eu acreditei no bilhete, pelo menos o suficiente para me lembrar da história da Cinderela e imaginá-la a passar ali e a deixar cair o sapato…
De facto, o que é engraçado é que o sapato deixou de representar lixo e poluição (naquela preciosa zona da nossa região), para passar a ter o estatuto de ser capaz de invocar uma história, e de invocar o nosso pensamento mágico e imaginário de criança – isto é arte.
De facto, também, é esta mesma capacidade de interpretar os acontecimentos de formas diferentes e de invocar diferentes justificações para uma mesma coisa, que nos pode levar a cometer atos bárbaros e crimes, como o que assistimos do piloto alemão que despenhou um avião com mais de cem pessoas, ou como o pai que apunha-la um filho até à morte – isto é loucura.
Não gosto de usar a palavra “nunca”, mas vou criar uma exceção. Nunca subestimemos aquilo que eu, tu, ou ele pode um dia pensar ou fazer. Mas mais importante que isso, que fique claro nas nossas cabeças que existe uma linha muito ténue (e eu diria que esta linha é mais um ponteado que uma linha clara e firme) entre ser mentalmente saudável ou mentalmente doente: bastam três ou quatro dias sem dormir para qualquer um começar a sofrer de alucinações auditivas, por exemplo, coisa que aprendi cedo na faculdade. E lembro-me de duas coisas que testemunhei no trabalho com doentes psiquiátricos crónicos: a) muitos deles tinham tido vidas completamente normais durante mais de metade da sua vida, b) às vezes o mais difícil para seres saudáveis e treinados como eu é não entrar nos filmes que estas pessoas contam e vivem.
Portanto, que nunca me esqueça disto: de saudável e de louco todos temos realmente um pouco. Por isso, pergunto: como é possível não tratar a saúde mental – a par da Arte – como uma preciosidade humana (i)mensurável, seja onde for?

maracastrocorreia@gmail.com