A doença da fibrose quística contada na primeira pessoa: Afinal é possível nascer duas vezes

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Gazeta das Caldas

beatriz e os paisAmanhã, dia 21 de Novembro, o calendário marca o dia europeu da fibrose quística. Os últimos dados divulgados pela Associação Portuguesa de Fibrose Quística revelam que na Europa uma em cada 2000 pessoas sofre desta doença. Em Portugal, estima-se que existem 400 doentes em acompanhamento médico especializado. Beatriz Ferreira, natural das Caldas, é um deles. Eis a sua história.

Com 22 anos, Beatriz Ferreira é recém-licenciada em Psicologia, pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada de Lisboa (ISPA). Em Setembro, iniciou-se no mestrado, a próxima meta a cumprir. A amiga Ana Silva, que só conheceu Beatriz na faculdade – depois do transplante pulmonar – confessa que a achava sobredotada. “A primeira vez que a vi, nas aulas, reparei que era muito mais pequena que os restantes colegas e, por isso, nunca pensei que tivesse a mesma idade que eu”, conta Ana Silva.

Foi em conversa, na cafetaria do ISPA, que Ana teve conhecimento que Beatriz era transplantada e recorda-se de como fez um esforço para conter as perguntas. Afinal, nunca tinha conhecido alguém na mesma situação.

Antes, Ana Silva já havia notado que a colega tomava alguns comprimidos, mas pensou que fossem suplementos ou vitaminas, nunca pondo em hipótese que a amiga fosse uma pessoa doente. Quando a notícia chegou, o choque veio atrás, principalmente porque “a Bia contou que tinha fibrose quística como eu digo que tenho miopia, com a maior das naturalidades”.

A mãe Rosário Ferreira acompanha desde o início o desenrolar da doença, que se manifesta a passo lento. Nos primeiros meses de vida, as infeções respiratórias começaram a tornar-se regulares e o peso parecia estar numa luta contra a balança: se nos outros bebés aumentava, na Beatriz diminuía. De tal forma, que Rosário Ferreira admite que chegou a ter um “trauma” com o peso da filha, pois nas consultas mensais do Centro de Saúde “os bebés da idade dela engordavam 400 ou 500 gramas e a Bia perdia 50 ou 70”, tanto que as enfermeiras “achavam que eu estava a fazer algo de errado”.

Felizmente por um lado, azar por outro, as dúvidas não se mantiveram por muito mais tempo. Logo aos três meses chegou o diagnóstico que explicava todas estas irregularidades. Através de um teste de suor, que mede a concentração de cloreto de sódio (maior nos doentes de fibrose quística), os pais tiveram conhecimento que a sua primeira filha sofria de uma doença genética degenerativa. O tom com que a notícia foi dada, recorda Rosário, não foi tranquilizante. “A médica do Hospital das Caldas disse-nos que a Beatriz tinha uma doença bastante grave e que dificilmente chegaria à idade adulta”. Com a sensação que o mundo desabara naquele preciso momento, foi só em Lisboa, no Hospital de Santa Maria, que nasceram novas esperanças.

Na primeira consulta de Fibrose Quística, Celeste Barreto (médica que acompanhou Beatriz ao longo dos anos) lembra-se como Rosário e Hélio Ferreira estavam assustados e nervosos. “Disse-lhes que cada caso era um caso e que a evolução da doença dependeria da mutação e dos cuidados preventivos que a Bia tivesse”. Cuidados esses que se iniciaram a partir do momento em que Rosário e Hélio saíram pela porta do gabinete médico.

Por um lado, a nível respiratório – e durante 18 anos – Beatriz fez cinesioterapia no Hospital Termal das Caldas da Rainha, duas vezes por semana. Em palavras simples, o tratamento consiste na prática de ginástica respiratória e correcção postural, uma terapia que o pai continuava em casa, à noite.

Pai com talento de enfermeiro

“O pai sempre foi um excelente enfermeiro, apesar de não ter qualquer tipo de formação”, conta a mãe Rosário. Beatriz Ferreira encarava os tratamentos como uma brincadeira, comparando os movimentos ao de uma cambalhota: de cabeça para baixo e com umas pancadinhas nas costas, o objetivo era soltar a expectoração. “Nem me apercebia que estava a fazer terapia porque via televisão e cantava ao mesmo tempo”, diz.

Relativamente à alimentação, Beatriz Ferreira nunca teve qualquer restrição, embora se visse obrigada a tomar enzimas pancreáticas em todas as refeições, pois estas facilitam a absorção dos nutrientes (que a doença impossibilita).

Falar sobre a infância de Beatriz implica fazer referência ao irmão, Tomás Ferreira. Apesar de ser mais novo dois anos e meio, foi ele quem desempenhou o papel de irmão mais velho. “As coisas entre nós aconteceram de forma diferente, não só pela doença, mas também porque a Bia era rapariga e mais pequena que eu”, revela Tomás Ferreira.

Nas brincadeiras que tinham um com o outro, Tomás diz que nunca sentiu a doença como um entrave à diversão, dando o exemplo dos momentos passados na piscina: “como ela era tão levezinha, fartava-me de atirá-la à água”. Ainda que reconheça um espírito protector em relação à irmã, Tomás acredita que também tentou sempre “não sufocá-la”, até porque os pais já tinham “essa preocupação extra”.

Beatriz não falava nem andava, muito menos gatinhava quando a fibrose quística lhe bateu à porta, passando a fazer parte das rotinas diárias de toda a família. A jovem não se lembra do momento em que os pais lhe falaram sobre a doença, mas rapidamente esclarece que essa conversa nunca esteve em falta, pois a única realidade que sempre conheceu foi a realidade da doença. “Aconteceu tudode forma muito natural, até porque não me lembro de não tomar a medicação ou de não fazer terapia”, diz.

Quanto à consciência de que era “realmente” doente, Beatriz afirma que esta só chegou por volta do primeiro ciclo, quando frequentava a escola primária. Os sintomas da fibrose quística, pelo menos os mais visíveis, chegam devagarinho e, por esta altura, Beatriz já não conseguia correr à mesma velocidade dos colegas.

O cansaço, a falta de ar, as infeções respiratórias, a elevada dose de expectoração e o atraso do crescimento, devido à desnutrição, são as principais consequências da doença. Porém, no caso de Beatriz, a fibrose quística trouxe consigo ainda mais malefícios. A diabetes, a osteoporose e a cirrose foram enfermidades que vieram de arrastão.

Em particular, a diabetes teve bastante impacto na vida de Beatriz. Aos 12 anos, passou a utilizar uma bomba de infusão de insulina, um pequeno aparelho – do tamanho de um telemóvel – que libera insulina 24 horas por dia, através de um tubo colocado sobre a pele. “Não estava minimamente preparada, nem sabia que era possível, porque os meus pais nunca me incentivaram a pesquisar sobre a fibrose quística”. Embora concorde com esta decisão, a estudante de psicologia confessa que gostaria de ter sabido que a diabetes era uma possibilidade. Foi precisamente nesta altura que Beatriz começou a procurar mais informação na internet, acabando por desistir rapidamente, “pelos resultados desanimadores”. As estatísticas apontavam uma esperança de vida muito reduzida, que não ia além da adolescência. “É por isso que acho que as estatísticas de nada servem para os doentes, apenas para os profissionais de saúde”, sublinha Beatriz Ferreira.

Se durante a infância, Beatriz sempre se sentiu igual aos amigos, acreditando que era possível seguir uma vida normal, a chegada da adolescência alterou as regras do jogo. Enquanto os amigos experimentavam as primeiras saídas nocturnas e o sabor de alguma independência, a “pequena” Beatriz via-se obrigada a esperar. Mesmo assim, fez questão estar presente nos eventos mais importantes, como jantares de turma e viagens de finalistas.

Entre dois mundos: a escola e o hospital

O primeiro internamento surgiu aos cinco anos. Apesar de Beatriz não guardar memória desse acontecimento, a mãe nunca esqueceu as palavras de consolo que a filha lhe deu na altura. “Eu chorava compulsivamente e a Bia virou-se e disse ‘Ó mãe, eu não estou aqui para ficar boa? Então não chores!’”. Com o avançar da doença, os dois normais internamentos por ano tornaram-se mais frequentes, chegando a dez ou doze na pior fase da doença, tinha a Beatriz 17 anos.

Rosário Ferreira relembra alguns dos momentos mais aflitivos. Uma vez, estava a filha nos cuidados intensivos, informaram-na que não faziam reanimação caso ela entrasse em coma. Outro, a propósito da colocação de um cateter, “não paravam de a picar, porque não encontravam a veia, até que a Bia disse que não queria mais e eu acreditei que ela ia desistir”.

Beatriz, por sua vez, relembra também que muitas datas importantes foram passadas no seu quarto de hospital, como aniversários, noites de Natal e passagens de ano. Ao mesmo tempo, não esquece o esforço dos pais em tornar esses momentos menos difíceis. “A minha mãe chegou a contratar uma manicure no meu dia de anos, para me arranjar as unhas, e no Natal trazia louça decorada com renas e o típico borrego para o jantar”.

Durante os períodos de internamento, que podiam estender-se até às duas ou três semanas, Beatriz via-se impossibilitada de ir às aulas, contando apenas com a ajuda dos colegas, que lhe disponibilizavam os apontamentos.

Denise Francisco conheceu a “Bia ratinha” no 7º ano, acabando por tornar-se uma das suas melhores amigas. “A Bia tinha uma capacidade enorme para não ficar atrás nas matérias e a verdade é que tinha excelentes notas”, conta Denise, que não esquece as noites de estudo em que a amiga se deitava tarde e a más horas, às três da manhã”, só para não perder o comboio dos colegas.

Teresa Mendes, professora de Filosofia, diz que é “impossível” alguém esquecer-se do exemplo da Beatriz. Ao recordar-se da ex-aluna, afirma: “a diferença da Bia para os outros alunos é que ela tinha muito mais vontade que os outros e sabia dar verdadeiro valor à escola”. Prova disso eram os momentos em que levantava o braço no ar para participar, mesmo “quando já só respirava um bocadinho e se via obrigada a falar mais devagar”. A tudo isto, Teresa Mendes acrescenta que sempre admirou a forma como a Beatriz lidou com a doença, principalmente porque “era uma pessoa que não tinha nenhuma pena de si própria, com uma coragem inabalável”.

“Nunca procurei ter regalias só por ser doente”, confirma Beatriz Ferreira. Quando, a meio de uma aula, se apercebia que estava com níveis baixos de glicose, pegava discretamente num pacote de açúcar e tomava-o, “sem pedir para sair da sala ou interromper a aula”.

O espaço da escola sempre foi o principal refúgio de Beatriz e um escape à fibrose quística: “tinha dois mundos, o da escola, que representava a normalidade, e o do hospital”. Em termos práticos, existiam duas Beatrizes, a doente e a normal, pelo menos até à entrada do oxigénio no seu dia-a-dia.

A notícia mais problemática que pode ser dada a um doente de fibrose quística, adianta Celeste Barreto, “é que passa a ser dependente de oxigénio, 24 horas por dia”. Aos 17 anos, Beatriz recebeu a notícia. A pequena mala de rodinhas que guardava a garrafa de oxigénio – transportado através de um tubinho que se fixava ao nariz – passou a acompanhá-la, fosse para onde fosse. Sempre que Beatriz dava um passo, o trolley seguia-lhe o andamento. “A Bia sentiu que a doença estava a controlá-la de uma maneira como nunca antes tinha acontecido”, afirma o irmão. Para Beatriz, a dependência do oxigénio significou cruzar os dois mundos, que deveriam estar separados. “Representou assumir perante o outro que era doente e frágil”, aponta.

O transplante pulmonar e a segunda oportunidade

Aos 18 anos, a única salvação possível para Beatriz seriam dois novos pulmões. 1 de Junho de 2011 foi o dia em que a tão desejada chamada telefónica chegou, anunciando que havia a possibilidade de um transplante. “A felicidade que senti nesse momento foi inexplicável, senti que a vida me estava a dar uma oportunidade para recomeçar”, conta Beatriz Ferreira. Já no hospital, depois de informar todos os amigos da boa notícia, teve que voltar a ligar-lhes, desta vez para dizer que os pulmões tinham sido indicados para outra pessoa. “Foi horrível, mas ao mesmo tempo uma lição”, afirma, pois à segunda vez, passados 15 dias, “estava muito mais calma e preparada para o pior”.

Depois do transplante (bem sucedido) seguiram-se 25 longos dias nos cuidados intensivos. Se um dia a recuperação avançava e Beatriz retirava um tubo, no outro a febre aparecia para atrasar o processo. No entanto, em comparação com outros doentes, “a minha recuperação foi rápida porque passados poucos dias já queria comer pão e pôr-me de pé”, conta orgulhosa. Ao respirar com os novos pulmões “senti que podiacorrer uma maratona. Aliás, tentei correr, mas como as minhas pernas não tinham músculo nenhum, ia caindo no chão”, confessa.

Apesar de nunca ter ganhado o euromilhões, a mãe Rosário diz que a vitória da filha frente à doença suplanta qualquer primeiro prémio. Para Tomás Ferreira, a “felicidade tornou-se normal, porque agora ninguém na família pensa na doença”. Já Celeste Barreto lembra-se bem das palavras do pai Hélio: “disse-me que tinhaentregado uma menina no Hospital de Santa Marta [onde ocorreu a operação] e lhe tinham devolvido uma mulher”. Isto porque, ao longo da recuperação e nos anos que se seguiram, Beatriz conseguiu finalmente ganhar peso, deixando os 38 quilogramas para trás.

Com os dois novos pulmões, Beatriz Ferreira continua a sonhar como sempre fez e a traçar planos para o futuro. Casar, ter filhos e alcançar o sucesso profissional são algumas das suas ambições.

Embora sempre se tenha considerado “mais sensível do que o normal” quanto à sua componente espiritual, nos últimos dois anos, Beatriz tem procurado na religião evangélica “novas forças para seguir em frente”. Mais precisamente na Igreja Fogo e Chama, em Almada, onde se desloca três a quatro vezes por semana.

Olhando para estes 22 anos, Beatriz diz encarar a vida como um livro. “Já tive capítulos que me ensinaram muito, mesmo não tendo os melhores desfechos, mas a verdade é que não se arrancam páginas, aprende-se a viver com o que a vida nos dá, aproveitando os ensinamentos de cada capítulo para virar a página e recomeçar uma história melhor”.