“Na Indonésia predomina uma cultura de bondade e de agradecimento, que se estende até a rituais de agradecimento à Natureza”

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emigrantesAndreia Nogueira
32 anos
Caldas da Rainha
Jacarta – Indonésia
Jornalista
 Percurso escolar:
EB 23 Cadaval, Escola Secundária Raul Proença, Escola Superior de Comunicação Social (Instituto Politécnico de Lisboa) e Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (Universidade de Lisboa)

 

Do que mais gosta do país onde vive?

Das pessoas. Tal como nós temos a palavra “saudade”, que não tem uma tradução verdadeiramente fiel para outros idiomas e que tanto nos caracteriza, eles têm a palavra “bahagia”, que define uma felicidade constante e independente do que quer que seja. Aqui predomina uma cultura de bondade e de agradecimento, que se estende até a rituais de agradecimento à Natureza. As pessoas oferecem os seus lugares às outras nos autocarros, especialmente os homens às mulheres, convidam um forasteiro que acabaram de conhecer para passar o Natal ou uma festa muçulmana na sua casa, mesmo tendo pouquíssimo dinheiro para a sua sobrevivência, e – o aspecto mais marcante – sorriem imenso. O sorriso aqui é tão natural como respirar e funciona como um grande abraço nos dias menos bons. Afinal, um sorriso pode ser tão vazio de intenções e fazer-nos sentir tão cheios. Regra geral, as pessoas são de trato delicado e muito educadas. Aliás, se alguém se mostra muito stressado ou arrogante é simplesmente desprezado ou motivo de chacota. Contaram-me uma história sobre a cultura javanesa que descreve bem a postura indonésia: um senhor viajava com o seu filho de comboio quando viu que outro passageiro estava a pisar a criança e disse-lhe: “Desculpe-me. O meu filho tem o pé debaixo do seu”. Obviamente, o outro passageiro desdobrou-se em desculpas, num caso que poderia ter dado confusão se tratado de outra forma. Por exemplo, quando decidi sair de um quarto e mudar-me para outra área, a proprietária, em vez de ficar aborrecida ou tentar tirar-me dinheiro, decidiu ajudar-me a encontrar outro local para ficar. Tenho vários exemplos de posturas semelhantes, onde, numa situação dita anormal para nós e na qual o outro poderia ficar aborrecido, o que obtive foi compreensão e apoio.

Além disso, eles vivem muito mais em comunidade do que nós, ocidentais. Desta forma, a pessoa não se sente tão pressionada para atingir as várias metas – muitas delas irrealistas – que as nossas sociedades colocam sob o indivíduo. Se uma pessoa necessita de dinheiro para uma cirurgia – num país onde infelizmente o atendimento médico deixa muito a desejar ou é muito dispendioso – as pessoas no seu entorno vão tentar reunir o montante necessário.

Também aprecio bastante a diversidade étnica, linguística, religiosa e cultural de um país com 17.000 ilhas e mais de 250 milhões de habitantes. O lema do país – “União na Diversidade” – está tatuado na consciência coletiva e, embora infelizmente assistamos a um crescendo da intolerância religiosa, genericamente falando, os indonésios são menos radicais do que nós quando se trata de aceitar outra religião, sendo que eles levam a prática da sua fé muito mais a sério, realizando vários rituais e discutindo os livros sagrados entre si nas conversas de café.

Resta ainda dizer que vivo num arquipélago lindíssimo, com inúmeras riquezas naturais e culturais, como o maior templo budista do mundo, aldeias dentro de lagos, vulcões, tribos e animais únicos, como o dragão-de-komodo, ainda que muitas pessoas só se recordem de Bali quando falamos da Indonésia.

O que menos aprecia?

As falhas na educação, que levam as pessoas a aceitar coisas totalmente censuráveis noutros pontos do globo, a começar pela corrupção, que existe a todos os níveis. Num país onde os salários da maioria são extremamente baixos – e onde os mais endinheirados têm fortunas que não se vêem em Portugal -, muitos funcionários a atender ao público ficam com parte do troco, mesmo que seja apenas meio cêntimo. Aliado a isto há a excessiva burocracia – não raras vezes exagerada por quem atende ao público – que quase convida os utentes a optarem pela corrupção.

Há também pouco cuidado com o lixo e muita desinformação sobre os seus efeitos na natureza. Os indonésios estão sempre a tomar banho e a limpar as suas casas, mas depois chegam à rua e deitam o copo de plástico do café para o chão. O facto de também haver uma preocupação em não deixar o outro “perder a face” faz com que não sejam tão diretos e honestos. Por último, esta cidade, que acolhe todos os dias cerca de 28 milhões de pessoas e que cresceu muito mais rápido do que deveria, tem o trânsito mais caótico do mundo (cientificamente comprovado) e imensa poluição.

De que é que tem mais saudades de Portugal?

Da minha família pois são pessoas extraordinárias que me têm ajudado e que me inspiram continuamente, e dos meus amigos, ainda que atualmente, devido à crise, a maioria esteja igualmente emigrada. Também sinto falta do verão português e da nossa rica gastronomia.

A sua vida vai continuar por aí ou espera regressar?

Eu amo o meu país e sinto-me grata, pois no meu trabalho estou sempre ligada a Portugal e aos demais países de língua portuguesa ao procurar notícias sobre atividades desses países aqui. Ademais, eu sempre sonhei ser correspondente internacional e gostaria de continuar a sê-lo. Estando a trabalhar como freelancer, tenho a liberdade de poder ir para outro país quando quiser, mas por agora Deus tem-me mantido aqui.

“Vivo ao estilo indonésio, num quarto simples, tomo banho de água fria e tento optar por produtos locais em vez de manter todos os hábitos alimentares portugueses”

Como sou jornalista freelancer, tenho de pagar impostos aqui e em Portugal estando a recibos verdes, o que não é nada fácil, pois o nosso país é mais favorável a quem decide não trabalhar do que a quem quer fazê-lo embora aufira rendimentos diminutos. Tenho trabalhado para vários meios de comunicação social nacionais e estrangeiros, embora escreva sobretudo para a agência Lusa. Para conseguir sobreviver, por vezes também faço traduções e outros trabalhos a partir de casa.

Hoje em dia, o grande público contenta-se com notícias falsas ou manipuladas que são espalhadas nas redes sociais e não quer pagar por verdadeira informação. Quem quer fazer jornalismo sério e manter a sua independência e isenção sendo freelancer, tem de ir buscar rendimentos a outros lados. O jornalismo, que já foi considerado o “quarto poder” no espaço democrático, precisamente por defender o cidadão de manipulações e procurar a verdade acima de tudo, deveria igualmente merecer mais investimento por parte do Estado. Já imaginou o que seria um polícia trabalhar como freelancer? É um pouco isso que é pedido aos jornalistas. Já para não falar na quantidade de trabalho (muitas vezes sem horários, sobretudo no jornalismo local) e de conhecimentos que são exigidos aos repórteres a trabalhar em full-time em Portugal, muitos deles em troca de um ordenado mínimo ou de uma oportunidade “única” de fazer jornalismo num estágio não remunerado. Estou a desviar-me um pouco, mas gostaria de aproveitar esta oportunidade para dizer aos leitores que aquilo que os informa, entretém e que eventualmente os leva a viajar sem sair do mesmo lugar, é fruto de um grande amor e de um desejo enorme de partilhar conhecimento e de construir um mundo melhor pela palavra.

Voltando à minha vida na Indonésia, tudo aqui é muito diferente e, embora eles sejam bastante tolerantes com os hábitos estrangeiros, convém adaptar-me, não só devido à minha profissão, mas também porque enriqueço enquanto ser humano. Por exemplo, no início andava um pouco irritada por ser socialmente pouco recomendável mostrar os ombros e andar de calções ou minissaias num país com tanto calor, mas depois uma pessoa explicou-me que não tinha necessariamente a ver com discriminação, mas sim com cultura, visto que os homens também tapam os ombros e não vestem calções. Se bem que quando sinto vontade de usar calções curtos num ato de rebeldia não acontece nada de extraordinário.

Aqui sou diariamente confrontada com o facto de que não é preciso ter muito para ser feliz. Também faço voluntariado num dos maiores aterros do mundo, ensinando inglês a crianças e adolescentes que vivem em casas improvisadas no meio do lixo. Quando existe uma casa de banho para dezenas de famílias é uma sorte. As próprias aulas são dadas no chão, o que se torna engraçado quando, por exemplo, uma pata decide interromper a aula com os seus filhotes passando no meio dos estudantes. Os indonésios adoram aprender, mas o que mais me espanta é a alegria e a integridade das pessoas que ali encontro.

Geralmente, os outros portugueses dizem que a vida aqui é mais cara, excepto os transportes. Efectivamente, a alimentação, a saúde, o ensino, entre outras despesas, custam mais aos bolsos de quem vem de Portugal. Mas eu vivo ao estilo indonésio, num quarto simples, tomo banho de água fria (o calor húmido até convida) e tento optar por produtos locais em vez de manter todos os hábitos alimentares portugueses. Houve outras adaptações que tive de fazer, como aprender a ser mais paciente, mas a vida exige-nos uma adaptação constante, quer estejamos na nossa aldeia, quer estejamos do outro lado do mundo. Citando um poema de Russell Kelfer, “o trauma que você enfrentou não foi fácil e Deus lamentou a sua dor, mas isso foi permitido para dar forma ao seu coração, para que semelhante ao dele se tornasse”.

Andreia Nogueira